domingo, 15 de dezembro de 2019

Mãos


Naquela noite, naquela mesa ao ar livre, trocamos um aperto de mão, como dois completos desconhecidos normalmente fazem.
Naquela época, eu não poderia saber que suas mãos teriam tanta importância na minha vida. Foi muito rápido, sem qualquer magia. Eu não tinha tido tempo ainda para perceber o quanto seus dedos eram curtos e gordinhos, e como eu amaria fazer carinho na pele das costas da sua mão.
Três dias depois, estávamos no cinema de mãos dadas pela primeira vez. E ali, sim, já havia magia. Eu nem de cinema gosto, mas suas mãos estavam ali, seus dedos entrelaçados nos meus. Eu teria ido quantas vezes você quisesse ao cinema pra parar o tempo ali.
Depois disso, suas mãos estavam a quilômetros de distância. Longe de vista, longe de toque. Só a lembrança do toque estava na minha mente. E me fazia tão bem que eu não queria mais pegar na mão de ninguém. Não era preciso. Tudo que eu precisava era esperar até o dia que suas mãos se abririam me dar aquele seu abraço gostoso.
E dias depois elas se abriam e me abraçavam. E eu me sentia tão confortado. Você me fazia acreditar que aquele contato também era bom pra você. Era tudo tão precário, mas era tudo tão bom. Chegava a dar medo de tão bom que era. Eu não merecia aquilo.
Tempos depois, nas ruas da cidade grande, andamos de mãos dadas pela primeira vez. Foi ali que eu descobri que eu prefiro ela na frente da minha, encaixada entre meu polegar e os outros dedos. Eu era tão jovem de corpo e espírito. Eu era tão leve, tão mais leve que hoje que, se eu olho pra trás, eu quase acredito que naquela época eu estava flutuando.
Num outro dia, suas mãos apareceram calejadas, machucadas. Eu não sabia o que estava te machucando, mas também pouco importava. O que quer que fosse, eu iria machucar de volta. Eu te defenderia contra tudo e contra todos, porque você era bom demais pra ser ferido por esse mundo. Eu morreria tentando.
E então você foi sarando, sarando. Algumas cicatrizes ficaram, mas suas mãos ainda eram as mesmas. E foi então a minha vez de me machucar, minha vez de cair. Na época parecia o fundo do poço, mas mesmo ali, naquele inferno, suas mãos estavam lá. Foram só as suas mãos que secaram as minhas lágrimas e me puxaram de volta pra cima.
E eu subi. Alto demais. Talvez no esforço de subir eu tenha esquecido de olhar ao redor. Vários detalhes passaram rápido demais e eu perdi todos eles. Mas, mesmo nessa velocidade, eu estava de mãos dadas com você, eu tinha a certeza de que você ainda estava ali. Nós estávamos subindo juntos.
Lá em cima, só havia o topo, você e eu. E então eu pus uma aliança na sua mão e você, uma na minha. Nós havíamos vencido.
Mas havia algo de errado. Minha cabeça estava girando, pesando.
E eu olhei pra baixo e vi sangue.
Meu corpo inteiro sangrava. Um milhão de ferimentos que jorravam sangue lá do topo, e o sangue era uma chuva que sujava o mundo lá embaixo.
Então, olhei pras suas mãos, um segundo antes de você tentar esconder a faca que segurava. Mas eu vi. Vi a faca, vi o sangue em suas mãos e a culpa em seus olhos.
Como você pode? Eu tentava puxar pela memória aqueles detalhes que havia perdido e era tão óbvio. Eu olhei pros seus olhos e eu não conseguia dizer nada, mas os meus olhos perguntavam: como você pode?
E, novamente, a queda. Mas essa era bem pior. Não havia fim, não havia fundo. Não havia nada, além de uma escuridão opressora. E essa escuridão me invadia e tomava conta dos meus pensamentos.
Não havia fundo.
E então nessa escuridão surgiam rostos de pessoas que eu não conhecia. Eles sorriam e eram tão bonitos, mas seus olhos eram pura escuridão.
Não havia fundo.
E esses rostos me encaravam e diziam que eu não tinha valor. Diziam que tudo que eu havia vivido até então era uma farsa.
Não havia fundo.
Diziam que eu só tinha uma juventude e que eles a roubaram de mim. Diziam que eu nunca mais me sentiria novo e leve.
Não havia fundo.
Pararam de dizer e sorriam. E gargalhavam. E gemiam de prazer. E deliravam de prazer. Cada vez mais rápido, cada vez mais agudo, cada vez mais alto, cada vez mais intenso...
E não havia fundo.
E não havia fundo.
E não havia fundo.
Mas havia uma mão. Uma mão de dedos curtos e gordinhos e pele macia. Uma mão ensanguentada, suja, se estendendo para mim. Uma mão calejada prometendo curar as feridas que ela mesma causou. Uma mão com uma aliança profanada jurando que não vai mais me apunhalar.
Os olhos de escuridão dos rostos ao redor se espreitaram e todos ficaram em silêncio, esperando para ver se eu vou pegar ou não.


sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Universal Studios

Acreditar no amor é como estar num parque de diversões. 
Você embarca em uma aventura, sabe que vai ter altos e baixos, adora e odeia a sensação ao mesmo tempo. Sente euforia, desespero, excitação, dor, liberdade, taquicardia. Você jura, por um minuto, que tudo aquilo é real.
As paredes ao redor são tão cheias de detalhes. As luzes, tão brilhantes. O universo quer que você acredite que pertence àquele lugar. Quer que você se entregue. 
E você é só mais um. E vai se entregando. Se deixando levar. Tudo que você quer é mais e mais dessa sensação maluca. 
De repente, você está tão envolto que o seu mundo passa a ser aquilo. Você se torna parte do parque de diversões. 
As montanhas russas são seu sangue circulando. Os espetáculos são seus pulmões respirando. 
É tudo tão mágico! Tão perfeito! Algum dia antes você imaginou que pudesse ser tão feliz assim? 
Você consegue sentir o cheiro de pipoca doce no ar? E essa música de fundo, tão simples e gostosa? 
O dia está perfeito. O sol parece que brilha mais forte aqui. Tudo é mais colorido. Faz um calor tão bom. 
Os chafarizes derramam vapor de água no seu rosto. É tão refrescante. 
E você dá uma respiração tão profunda. E solta o ar. E tudo corre tão limpo dentro de você. 
Por uma fração de segundos, você está flutuando. Você vai subindo, subindo. Está quase tocando o céu...
Mas o amor não é real. 
Tudo é uma mentira. Tudo é uma ilusão. 
Desça dai agora!
Essas paredes caem se você as empurrar. As atrações são desligadas. As luzes se apagam. Depois de um tempo, ali não resta nada a não ser um cemitério de armadilhas. 
E o que há na verdade é uma escuridão intimidadora. 
E todas as memórias boas que um dia você teve ali voltam. Mas voltam diferentes. Elas já não tem a cor. Elas vagueiam no escuro, rindo de você. 
Do que você tem medo? Até crianças amam parques de diversões! 
E você tenta de novo. Tudo que você quer é a ilusão de volta. Mas não dá. Só resta o pavor. 
A bolha de felicidade em que você vivia era tão confortável. Mas basta um cabo solto no meio de todos aqueles brinquedos e a tragédia se instala. Basta prestar mais atenção e vai ver que há pontos no parque com placas de “não ultrapasse”. Há coisas que não querem que você veja. 
O amor não existe. 
Quanto mais tempo você ficar nesse parque, mais vai ser dependente dele. 
Há uma vida de realidade lá fora. Nua, crua e cruel. 
Você pode encarar a vida. Ou pode aguardar na fila da próxima atração. 
A escolha é sua. 

sexta-feira, 21 de julho de 2017

Jovem velho

Quando foi que eu me tornei esse eu de hoje?
Quando foi que eu deixei tudo isso pra trás?
Eu ouço no escuro as mesmas músicas da década passada
E só imploro no meu íntimo que elas despertem emoções mais uma vez

Mas as notas vêm e com elas só uma nostalgia cinza
Uma saudade distante, de dias que eu mal me lembro direito
Onde estão todas aquelas pessoas? Como eram seus nomes mesmo?
Por que se tornaram tão desinteressantes?

Eu me sinto tão velho. Tão sem forças
Talvez eu ouça essas músicas atrás de um pouco de juventude, de vigor
Mas essas batidas estão tão gastas quanto eu. Não há mais arrepios com os graves

Talvez a culpa seja toda minha. Minha e da minha pressa.
Eu não sei por que eu me sinto sempre atrasado
Só sei que eu corri tanto que conquistei o mundo cedo demais.

E agora? O que resta a ser feito?
Não há mais desafios que me despertem o interesse
Porque eu estou velho demais pra começar tudo de novo

E novo demais pra estacionar
Eu só peço uma noite de festa que não pareça uma eternidade
Uma noite que amanheça em minutos e eu ainda esteja sorrindo de manhã
Uma noite que valha a dor no calcanhar
E que eu me divirta sem culpa

Eu achava que estava conquistando a liberdade
E gastei todo meu tempo com isso.

sábado, 21 de janeiro de 2017

Realidade

Por que você quis meu coração exposto?
Ali, cru, vulnerável, batendo animalescamente?
Quanto eu te mostrei, foi porque eu acreditei que havia um lugar seguro pra o deixar
Não foi pra você o ridicularizar

Eu confiei. Desconfiando, confiei
Porque achei que você jamais pudesse me machucar
Pensei que na fuga daquelas mesmas feridas de sempre
Você fosse um Porto Seguro

Por que você disse chorando que eu era uma alma sofrida?
Se não era pra dizer que você entendia
Eu nunca me despi assim na frente de ninguém
Porque eu sabia que seria quando olhos julgadores me invadiriam

Não que minhas perguntas façam algum sentido agora
Mas não espere ver minha alma tão de perto novamente
Porque você só demonstrou com essa sua postura
Que dói mais o golpe de quem a gente confia

E aqui estou eu: pelado e ferido
Sem lugar pra voltar, sem lugar pra ir
E não ache que você vai me ver assim novamente
Pois as únicas desculpas que eu devo são por te mostrar demais de mim.


sábado, 2 de agosto de 2014

O Sol

Acho que eu nunca tinha reparado detalhadamente a trajetória que o sol faz pelo céu antes.
Mas hoje, se você me perguntar, eu sei exatamente o caminho
Porque ultimamente meus dias têm sido isso: acompanhar impaciente o sol se por
E querer acreditar que, no máximo em meia hora, você vai estar aqui, sabendo que não vai.

Eu sei que eu não posso chegar e dizer o que você deve fazer com seus dias
Mas eu troquei de vida pra poder ter mais momentos com você
E tudo que eu consegui foram mais momentos dentro desse quarto
Que a cada segundo de atraso mais parece uma prisão

E as grades vão se estreitando, o ar vai faltando, eu vou delirando
Já não sei se a prisão é o quarto ou é você
Eu sei que você não me quer mal, mas parece se importar cada dia menos
Ou sou eu quem se importa cada dia mais

Você deveria saber que minha única distração é ficar aqui, olhando o sol pela janela
Jogando meus dias fora e rindo de mim, que poderia estar sorrindo também
Você também deveria saber que esse sol está me aquecendo
E a cada dia o olhando é um dia mais perto da ebulição

E quando eu finalmente ferver, eu vou transbordar, derramar, derreter
E escapar entre as grades da prisão
E não haverá nada que você possa fazer
Porque eu nunca fiz questão de esconder a impaciência

Você se importa? Então me leve para o sol
Voe comigo até bem perto dele, até eu evaporar
E me transformar em chuva, e desaguar, pra correr livre de novo

Quero ser mais que espectador da minha própria vida.


domingo, 9 de junho de 2013

Um ano.



Não posso olhar pra você. Eu estou confuso.
Eu me sinto como um passado incômodo, que você não deveria ter despertado.
Não sei o que está havendo comigo, pensei que já havia enterrado aquilo tudo.
Mas não. Parece que está tudo aqui, novamente.

Eu queria que você me perguntasse o que há de errado.
Pra que eu pudesse desatar esse nó na minha garganta
Eu te diria que eu fico imaginando
Como as coisas teriam sido de tivéssemos lutado um pouco mais

E como eu queria ter lutado mais, agora que já fui vencido.
Ele deve ser tão sortudo, tão melhor que eu.
E ele está do seu lado, você pode sentir o seu calor
Contra isso eu jamais poderia competir

Eu queria poder dizer que, se a gente ainda tivesse alguma chance
Eu aceitaria aquela proposta de que fiz desdém
Só por você, só pra tudo voltar a ser como antes
Mesmo sabendo que você recusaria, e que nada será como antes.

Eu tenho plena consciência da realidade
Mas ela agora me machuca tanto, que eu prefiro fantasiar
Como sinto falta daquele ano, e de como tudo parecia mais brilhante
Mas você ama e desama muito rápido.

E eu insisto a me apegar em um passado
porque eu olho pra frente, e não vejo nada que poderia ser melhor
E então me dou conta que estou suspenso no tempo
Meu coração ficou pra trás. Não há mais nada que pulse em mim agora.

sábado, 8 de junho de 2013

Dia negro.

Há certos presentes que a gente não escolhe ganhar.
Eu, por exemplo, não queria ganhar essa passagem inevitável do tempo
Isso me faz pensar no passado, e de tudo que foi deixado para trás.

Não é uma questão de se arrepender ou não
Não cabe se arrepender do que é imutável.
Certas coisas são deixadas pra trás, e ponto final.

Há certas feridas que a gente nunca deve remexer.
Eu sei que a gente já superou a nossa, mas fui pego de surpresa
às vezes a constatação de que somos nada além de passado me assusta

Somos nada além de passado. Somos nada além de vítimas do destino
Estou feliz por você, juro. Mas estou triste por nós.
Porque lá no fundo, eu sempre tive esperança de que um dia o universo enfim conspirasse a nosso favor.

Ledo engano. Há certos futuros que são inviáveis.
Começo a pensar que há mais futuros inviáveis do que alternativas
Eu só queria que tudo tivesse sido diferente. Tudo.
Que nossa história não estivesse sido escrita do avesso

Mas não importa. Há certas dores que ninguém ameniza
Nem um novo amor, nem um bom amigo, nem bebida, nem o tempo
Há certas dores que devem nos acompanhar no túmulo.

Eu deveria ter jogado meu coração naquelas águas
daquele rio, e largado ele por lá, afundando
E nunca esperar que, um dia, ele flutuasse num longínquo oceano.