Naquela noite, naquela mesa ao ar livre, trocamos um aperto
de mão, como dois completos desconhecidos normalmente fazem.
Naquela época, eu não poderia saber que suas mãos teriam
tanta importância na minha vida. Foi muito rápido, sem qualquer magia. Eu não tinha
tido tempo ainda para perceber o quanto seus dedos eram curtos e gordinhos, e
como eu amaria fazer carinho na pele das costas da sua mão.
Três dias depois, estávamos no cinema de mãos dadas pela
primeira vez. E ali, sim, já havia magia. Eu nem de cinema gosto, mas suas mãos
estavam ali, seus dedos entrelaçados nos meus. Eu teria ido quantas vezes você
quisesse ao cinema pra parar o tempo ali.
Depois disso, suas mãos estavam a quilômetros de distância.
Longe de vista, longe de toque. Só a lembrança do toque estava na minha mente. E
me fazia tão bem que eu não queria mais pegar na mão de ninguém. Não era
preciso. Tudo que eu precisava era esperar até o dia que suas mãos se abririam me
dar aquele seu abraço gostoso.
E dias depois elas se abriam e me abraçavam. E eu me sentia
tão confortado. Você me fazia acreditar que aquele contato também era bom pra
você. Era tudo tão precário, mas era tudo tão bom. Chegava a dar medo de tão bom
que era. Eu não merecia aquilo.
Tempos depois, nas ruas da cidade grande, andamos de mãos
dadas pela primeira vez. Foi ali que eu descobri que eu prefiro ela na frente
da minha, encaixada entre meu polegar e os outros dedos. Eu era tão jovem de
corpo e espírito. Eu era tão leve, tão mais leve que hoje que, se eu olho pra
trás, eu quase acredito que naquela época eu estava flutuando.
Num outro dia, suas mãos apareceram calejadas, machucadas.
Eu não sabia o que estava te machucando, mas também pouco importava. O que quer
que fosse, eu iria machucar de volta. Eu te defenderia contra tudo e contra
todos, porque você era bom demais pra ser ferido por esse mundo. Eu morreria
tentando.
E então você foi sarando, sarando. Algumas cicatrizes
ficaram, mas suas mãos ainda eram as mesmas. E foi então a minha vez de me
machucar, minha vez de cair. Na época parecia o fundo do poço, mas mesmo ali,
naquele inferno, suas mãos estavam lá. Foram só as suas mãos que secaram as
minhas lágrimas e me puxaram de volta pra cima.
E eu subi. Alto demais. Talvez no esforço de subir eu tenha
esquecido de olhar ao redor. Vários detalhes passaram rápido demais e eu perdi
todos eles. Mas, mesmo nessa velocidade, eu estava de mãos dadas com você, eu
tinha a certeza de que você ainda estava ali. Nós estávamos subindo juntos.
Lá em cima, só havia o topo, você e eu. E então eu pus uma
aliança na sua mão e você, uma na minha. Nós havíamos vencido.
Mas havia algo de errado. Minha cabeça estava girando,
pesando.
E eu olhei pra baixo e vi sangue.
Meu corpo inteiro sangrava. Um milhão de ferimentos que
jorravam sangue lá do topo, e o sangue era uma chuva que sujava o mundo lá embaixo.
Então, olhei pras suas mãos, um segundo antes de você tentar
esconder a faca que segurava. Mas eu vi. Vi a faca, vi o sangue em suas mãos e
a culpa em seus olhos.
Como você pode? Eu tentava puxar pela memória aqueles detalhes
que havia perdido e era tão óbvio. Eu olhei pros seus olhos e eu não conseguia
dizer nada, mas os meus olhos perguntavam: como você pode?
E, novamente, a queda. Mas essa era bem pior. Não havia fim,
não havia fundo. Não havia nada, além de uma escuridão opressora. E essa
escuridão me invadia e tomava conta dos meus pensamentos.
Não havia fundo.
E então nessa escuridão surgiam rostos de pessoas que eu não
conhecia. Eles sorriam e eram tão bonitos, mas seus olhos eram pura escuridão.
Não havia fundo.
E esses rostos me encaravam e diziam que eu não tinha valor.
Diziam que tudo que eu havia vivido até então era uma farsa.
Não havia fundo.
Diziam que eu só tinha uma juventude e que eles a roubaram
de mim. Diziam que eu nunca mais me sentiria novo e leve.
Não havia fundo.
Pararam de dizer e sorriam. E gargalhavam. E gemiam de
prazer. E deliravam de prazer. Cada vez mais rápido, cada vez mais agudo, cada
vez mais alto, cada vez mais intenso...
E não havia fundo.
E não havia fundo.
E não havia fundo.
Mas havia uma mão. Uma mão de dedos curtos e gordinhos e
pele macia. Uma mão ensanguentada, suja, se estendendo para mim. Uma mão
calejada prometendo curar as feridas que ela mesma causou. Uma mão com uma
aliança profanada jurando que não vai mais me apunhalar.
Os olhos de escuridão dos rostos ao redor se espreitaram e todos
ficaram em silêncio, esperando para ver se eu vou pegar ou não.